sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

POÉTICA MARAJOARA


Conheça um pouco da literatura de José Lúcio Sarmento Alves. Nasceu no município de Salvaterra, em 17 de setembro de 1966. Filho de Maria José Sarmento e de Lúcio Barbosa Alves. Formado pela UFPA, Campus de Soure, no Curso de Letras e Artes.
Em nossas pescarias literárias, encontramos a arte deste marajoara, mas uma bela tarrafeada na valorização de nossas raízes. Fonte: CPOEMA.




O BOTO
Uma versão científica

Chegamos debaixo de um verdadeiro aguaceiro. Maio era um dos meses mais chuvosos do inverno marajoara. Distingui a escola e a capela no meio do temporal. João vinha logo atrás de mim soltando imprecações. Estávamos ensopados até os ossos. Passamos pela escola e demos de frente para a casa grande. Tia Ana nos viu surgir no canto da escola e sorriu. Assim que pisamos no pátio, ela estava abrindo a porta e recebeu-nos de braços abertos:
— Antônio! João! Que surpresa! Vamos entrando! Olha só como estão molhados.
Nesse instante, os que estavam na cozinha também vieram ao nosso encontro, com os abraços calorosos. João depositou nossas sacolas em cima de um velho baú, que ficava no canto de um dos quartos. Airton me abraçou feliz da vida:
— Até que enfim vocês chegaram pra animar isso aqui!
— É, estava louco pra vir logo, mas aconteceram uns imprevistos. Espichei a cabeça pela janela e reparei que, do outro lado do jardim, pros lados da casa-do-forno, havia um grande movimento.
— Estão na farinhada?
— É, estamos terminando a nossa, e já vamos começar a do tio Sabá. Vamos até lá?
— Espere só até eu trocar de roupa!
— Como é? Já reparou na maré? Mais logo vamos cair n’água.
Aproveite a bermuda molhada como está.
— Tem razão. Eu espero vocês.
Só então reparei no igarapé. Estava cheio. As longas raízes dos mangueiros descreviam uma longa curva no ar e se prendiam no fundo do leito lodoso do igarapé, formando um cenário lúgubre, dantesco. Como se enormes aranhas caminhassem sobre as águas cor de chumbo. Parecia mais terrível com aquela chuva torrencial, que apressava a chegada da noite, tornando as cinco horas da tarde escura e triste. Naquele momento, João, a quem chamávamos Juca, entrou no quarto acompanhado do primo Tonico, o qual me saudou:
— Oi, primo!
— Oi, Tonico! Estávamos indo visitar a casa-do-forno. Vocês vêm com a gente?
I Antologia Literária do Marajó
68 Biblioteca Virtual do CPOEMA
— Vamos, sim. Mas, antes, a tia está chamando pro café.
Dirigimo-nos para a cozinha. Nem bem estávamos sentando, quando o resto da primarada irrompeu no recinto como um bando de araras. Estavam quase todos: Zazá, Rosa, Cacá, Dilermando (Dila), Cláudio, Mauro, Anita... Todos riam e falavam ao mesmo tempo, como numa Torre de Babel. No entanto, fora como se eu tivesse jogado um jato de água na fervura, quando indaguei:
— Cadê a Mariazinha?
Houve um silêncio de morte. Perscrutei os rostos de um por um e percebi que algo estava errado.
— Então? Ninguém me responde? Onde está Mariazinha?
Todos sabiam dos meus sentimentos pela prima. Por isso relutavam em me dizer. Zazá foi quem respondeu:
— Ela tá muito doente, Tuca. Tuca era como me chamavam. Eu era um dos cinco primos mais velhos. Os outros me tinham um certo respeito. Era muito bom o namoro entre nós, durante as férias escolares. Eu namorava a Mariazinha há um ano, já.
— O que ela tem? Perguntei.
— Não sabemos. O tio Pedro acha que é caso de levar pra Belém. Disse a Zazá.
— Já até trouxeram o pajé pra ver Mariazinha. Quem falou foi
Rosa.
— Pajé? Pra quê? Perguntei.
— Pra nada! Desta vez quem interrompeu foi tia Ana. – Não ligue pra esses moleques, Tuca. A Maria está só um pouco adoentada. Talvez seja só uma gripe. Agora voltem pro trabalho, que a farinha tem que ficar pronta ainda hoje. Eles se despediram e ficamos sós.
— Parece que tu tá com azar, hein, mano?
— É, Juca. Preciso fazer uma visita para a prima. E terminamos nosso café.
Chegamos à casa-do-forno no momento em que a última cuia de farinha estava sendo despejada na saca. O pessoal ajeitava-se pelos assentos para descansar e prosear. Fomos recebidos calorosamente, e respondemos às perguntas costumeiras. Então, principiou-se a conversa propriamente dita. O Juca pediu licença e foi procurar companhias da sua idade. Eu, pelo contrário, adorava estar no meio daquela gente alegre, espontânea e simples. Adorava sobretudo ouvir suas narrativas.
Gente crédula, supersticiosa. Eles sabiam que eu não acreditava muito naquelas estórias e, por isso, me tratavam com certa reserva. Para mim o melhor contador de estórias era o meu avô. Embora ali estivessem bons narradores, como tio Manduca, Zé Jiboia, tia Herundina, tia Cota, seu Rogério e tio Sabá. Para mim, vô Miguel era o melhor de todos, o maioral. Homem simples, voz grave, pausada, utilizava recursos próprios para despertar a curiosidade, como enrolar um cigarro no meio de uma narrativa, enquanto aumentava a expectativa da plateia.
Uma das lendas mais interessantes que vô Miguel costumava narrar era a do boto.
— O boto – dizia ele – é o mais feiticeiro dos peixes. E assim iniciava a estória. Esta lenda surgiu da crença de que o boto é um ente encantado que, nas noites de lua cheia, sai das profundezas dos rios, se transforma num belo homem e encanta as jovens caboclas ainda virgens. Seduzindoas, o boto-homem as conduz para o fundo do rio, ou engravida-as. O filho que nascer dessa relação, por sua vez, quando adulto, atira-se no mar e transforma-se em boto.
De nada valeu dizer ao meu avô que o boto não passava de um mamífero, um cetáceo como a baleia e o golfinho, e que, por causa dessas crendices, estava com a vida ameaçada. O boto ainda era, para aquela gente, um mistério. À noite, reuni-me com os outros primos e convidei:
— Vamos até a casa da tia Rosa fazer uma visita para Mariazinha.
Ninguém se manifestou favorável.
— Afinal, o que está acontecendo? Toda vez que falo na
Mariazinha vocês se espantam. A doença dela é tão grave assim?
— Sabe o que é, Tuca, a tia Rosa não quer que ninguém fale com ela – falou a Zazá.
— Mas por quê?
— Isso não sabemos. Vamos meninas! E elas se retiraram.
Olhei para os rapazes. Todos me olhavam de uma maneira estranha. Foi Dila quem falou:
— Ah! Não esquenta, primo! Isso é coisa de mulher. A velharada tá estranha. Ninguém fala nada. Ficam cochichando pelos cantos e nos proíbem de visitar a Maria.
— Só que eu não sou vocês. Venha, Juca. Vamos até a casa da titia.
— Vamos, mano. Também não gosto desse mistério.
Chegamos pelos fundos da cozinha. A casa era grande, de madeira. Entramos de como de costume: gritando sem cerimônias.
— Ei, de casa! Cadê o pessoal dessa casa?
Titia surgiu na varanda, com uma estranha expressão no rosto.
— Oi, rapazes! Soube que já estão de férias.
— Oi, titia. Soubemos que a Maria está de cama. O que ela tem?
— Não é nada sério. É só uma dor de cabeça.
— Podemos ver ela? – Perguntou o Juca.
— Sinto muito, Juca, mas ela está dormindo. Amanhã, quem sabe...
Neste instante, um homem de negro, de barba e cabelos grisalhos, surgiu atrás de titia. Vinha da direção do quarto de Maria, como pudemos observar.
— Vamo, Dona Rosa. O trabalho vai começá. Disse o velho.
— Certo, seu Rouxinol. Boa noite, garotos!
Saímos da casa bastante aturdidos. Na hora do jantar na casa do vovô perguntei:
— Quem é aquele homem, na casa da tia Rosa? Fiquei observando o semblante de cada uma daquelas pessoas. Foi vovô quem respondeu:
— Pai Rouxinol está cuidando de Mariazinha.
— Por quê? Não é melhor chamar um médico?
Ninguém respondeu. Resolvi não insistir. Pela manhã, enquanto todos saiam pra a roça, enveredei pelo caminho da mata, que dava certo na casa de Maria. Saltei a janela, como de costume, e dirigi-me ao quarto da prima. Abri a porta e deparei com uma cena deprimente. Maria estava sentada na beira da cama, pálida, magra, triste. Tentou sorrir quando me viu, mas apenas sussurrou:
— Tuca!
Aproximei-me e segurei sua mão. Ela estava linda, frágil como uma rosa. Perguntei:
— O que está acontecendo, meu amor? Você está bem?
— Estou cansada...!
Ela deitou e imediatamente adormeceu. Senti, no ar, forte cheiro de incenso. Levei um grande susto quando me deparei com aquele homem. O tal Rouxinol.
— O que faz aqui dentro? Perguntou mal-humorado.
— Quero saber o que está fazendo com ela?
— Não é de sua conta!
— É da minha conta, sim! E, se não me disser, vou chamar a polícia!
Ele acreditou. Respirou fundo e disse:
— Tô tentando livrar ela do mardito.
— Do que está falando?
— Dele! Do mardito peixe! Quer levar a criança, sabe? Tá
mundiando a menina!
— Quer falar mais claro! Não estou entendo nada!
— Na próxima lua cheia ele vem, e vai arrastar Maria pro fundo do rio.
— Mas, ele quem?
— O boto. Agora, sai daqui!
Saí sem dizer uma palavra. E sem acreditar no que havia escutado.
Como poderia ser ele? A lenda. O boto.
Agora eu compreendia porque os velhos faziam tanto segredo.
Não dormi direito durante dois dias. Estava sempre olhando pro rio e lembrando o que o pajé havia dito. A lua cheia se aproximava. Os rapazes estranhavam minha ausência nas brincadeiras. Os velhos, o meu silêncio. Aquilo não poderia ser possível. Não poderia ser verdade. Finalmente era lua cheia. Como se obedecessem a um sinal previamente estabelecido, todos silenciaram. As meninas não se aproximavam do igarapé. Os velhos encerram a farinhada. Como se adivinhasse o que eles estavam pensando, resolvi que deveria fazer alguma coisa. Se aquele monstro existisse de verdade, eu não deixaria que levasse Mariazinha. Era já de madrugada quando deslizei sorrateiramente da rede. Apanhei a mochila que havia deixado na noite anterior com o material que poderia precisar. Tendo a lua como testemunha rumei para o porto de baixo, que ficava de frente para a casa de tia Rosa. Se aquele tal boto resolvesse aparecer naquela noite era da água que ele sairia. Encostei-me num velho bacurizeiro e me pus vigilante. Dali, dava para vigiar o porto e a casa da titia. Empunhei a espingarda de caça do meu avô, deixei o facão ao alcance da mão e esperei. A poronga se fez desnecessária, pois a lua iluminava toda a paisagem. Seus raios arrancavam reflexos dourados, e sua claridade produzia arabescos das sombras dos mangueiros. Só ouvia a cantilena noturna. Meus nervos estavam à flor da pele. O vôo de uma coruja assustou-me. Várias horas se passaram e o sono chegou.
Eram quase cinco horas da manhã. A lua havia se retirado, e eu resolvi me retirar também. Pela manhã ninguém pareceu ter notado a minha ausência. O resto do dia transcorreu sem incidentes. Passei o dia inteiro observando a casa de Maria. Cheguei a vê-la aparecer na janela, bela como a primavera. Aquela aparição deu-me a coragem que faltava para repetir o feito da noite
passada. Quando todos adormeceram, ocupei meu posto de vigilância. Desta vez, havia arranjado um casco e me afastado da margem. As horas se arrastavam lentamente. Comecei a temer que estava perdendo o meu tempo. Já eram quase três da madrugada, e nada de boto. Começava a chover quando resolvi voltar pra rede. Justamente quando peguei no remo um relâmpago riscou o céu, iluminando a noite. Subitamente, as águas foram rompidas, dando passagem para um titã de corpo luzidio. Um boto enorme saltou bem junto do casco. Aqueles foram os instantes mais longos de minha vida. Seu corpo, brilhando pelo clarão do relâmpago, voltou a afundar na água escura. Percebi que ele apontava na direção da margem. Fiquei paralisado, como se uma estranha força impedisse de me mover. Dali de onde estava vi um vulto de um homem alto e elegante, todo de branco, emergir das águas. Subiu agilmente o barranco e foi em direção à casa de tia Rosa. Parou diante da janela do quarto de Maria e esperou. Pude distinguir, no meio da chuva que caía, o vulto de minha prima. Foi aí que saí do meu estupor, remei vigorosamente até a margem, subi a encosta já engatilhando a espingarda. Cheguei no alto do barranco quando eles já ali se encontravam. Maria parecia hipnotizada. Deparei, então, com um homem de olhar frio, sobrenatural.
Tentei gritar. Mas não consegui. Eles passaram por mim e não tive forças para mover um músculo sequer. A espingarda deslizou das minhas mãos. Entendi horrorizado que estava impotente diante daquele ser hediondo. Senti o desespero de apossar de mim. Precisava reagir de qualquer maneira. Escutei Maria me chamar. Ela também tentava reagir. Reuni minhas forças e, num ímpeto, consegui me libertar. Saltei o barranco, empunhando o facão. Vi Maria, com as águas até o joelho, estender as mãos para mim. O homem se colocou entre nós. Cortei o ar com um golpe de facão. Tudo inútil. Ele agarrou a minha mão armada com grande facilidade e, com um forte tapa no rosto, prostrou-me na lama. Senti o gosto do sangue na boca. Novamente pus-me de pé. O monstro tentou me acertar de novo. Meti a cabeça nele, ergui-o do solo e bati com ele na lama. Esmurrei-o duas vezes, mas ele nada parecia sentir. Tentou me asfixiar apertando meu pescoço. Com um pisão desvencilhei-me de seu aperto mortal e corri até Maria. Apanhei-a pelas mãos e procurei fugir dali. Tudo em vão. O boto-homem surgiu minha frente, acertou um forte golpe na minha cabeça e tudo ficou escuro. Quando voltei a mim estava deitado num lugar estranho. Ouvia vozes ao meu redor, mas nada compreendia. Então alguém falou:
— Saudações, terrestre! Você apenas ouvirá, mas não poderá falar.
Somos uma raça que vive num planeta há milhões de anos-luz daqui. Apesar de nosso poderio tecnológico, nossa raça não conseguiu evitar que uma desgraça se abatesse sobre o nosso planeta. Nossos cientistas perceberam que o uso excessivo de produtos químicos estava causando danos irreparáveis à qualidade de vida na nossa atmosfera. Sobretudo, que havia causado modificações no sistema reprodutor feminino de nossa espécie. Explicando: nossas fêmeas estavam se tornando estéreis. Dentro de mil anos terrestres nossa raça deixaria de se renovar. Então, descobrimos que a fêmea de sua raça apresenta uma estrutura orgânica idêntica à da nossa. No entanto, nunca poderíamos nos mostrar aos governantes de seu povo. Eles reagiriam com violência ao nosso contato. Foi então que percebemos como a sua gente é supersticiosa e resolvemos criar uma lenda. Usamos o boto por ser uma espécie inteligente e curiosa. Assim, raptávamos suas mulheres, estudávamos sua estrutura reprodutiva e não éramos incomodados. Em troca, demos ao boto uma espécie de sonar, que o possibilita orientar-se no fundo do rio. Nunca, porém, havíamos nos deparado com um caso como o seu. O seu sentimento foge de nossa compreensão. Uma estranha força capaz de romper o campo hipnótico a que o submetemos e até ferir-me fisicamente. Ao partirmos levaremos esta informação a respeito de um sentimento terrestre chamado amor. Depois de algum tempo todos os fatos deste encontro serão apagados de suas memórias. Adeus, terrestre!
Aquilo foi como um sonho. As imagens eram vagas, mas a voz era clara. Quando acordei estava deitado na beira do igarapé, junto ao corpo imóvel de Maria. Tomei-a nos braços e voltei para casa. Titia nos recebeu à porta. No outro dia, a conversa girava em torno do sonambulismo de minha prima. E de como evitei que ela se afogasse. Será que foi tudo um sonho? Não sei. Só sei que antes que estas lembranças se evaporem, resolvi escrevê-las.  Agora, só me resta aproveitar o resto de minhas férias...

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