ACOMPANHE ESTA REPORTAGEM ONDE ARTHUR
VERÍSSIMO JORNALISTA DA REVISTA TRIP DESCOBRE COMO É VIVER SOBRE DUAS RODAS. AFUÁ,
UM DOS MUNICÍPIOS DO ARQUIPÉLAGO DO MARAJÓ, MANTEM UMA CULTURA QUE SE FOSSE
COPIADA POR MUITOS, A SAÚDE HUMANA E A DO O PLANETA ESTARIAM BEM MELHORES.
Na borda oeste da Ilha de Marajó
fica um dos raríssimos lugares no mundo onde carros são proibidos. Por lá, as
bicicletas reinam soberanas.
Fotos: Nelson Mello
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Os bons ventos amazônicos e o
movimento da maré indicavam que teríamos uma noite exuberante navegando o rio
Amazonas. A pontualidade ribeirinha foi britânica, e a embarcação Fé em Deus
soltou suas amarras precisamente às 23h, conforme estabelecido, do porto de
Macapá, capital do Amapá. O barco se deslocava suavemente pelo delta do rio
Amazonas, com passageiros em excesso e tecnobrega bombando no convés. Dezenas
de pessoas se espremiam entre as redes procurando um cantinho para a travessia.
Segundo o capitão, seriam cinco horas para vencer os 100 km até a pequena Afuá,
cidade encravada em um ponto da borda oeste da imensa Ilha de Marajó. Durante
um bom tempo fiquei observando a abóboda celestial com suas estrelas e
constelações, e lá pelas tantas fui esticar o corpo numa rede. Quando peguei no
sono senti o barco chacoalhando intensamente. Sonolento, olhei para os lados e
captei imensa balbúrdia: pessoas choravam e clamavam por Jesus para apaziguar
as águas e os ventos. A água espirrava pelo convés e laterais do Fé em Deus com
força titânica. Não deu em nada. Da mesma forma como apareceu repentinamente a
borrasca, um oceano de tranquilidade instalou-se no turbulento rio Amazonas.
Exatamente às quatro da madrugada a embarcação ancorava no portinho de Afuá.
Caminhamos duas esquinas e fomos
descansar no hotel Afuá. Cochilei por duas horinhas e saí para farejar,
borbulhava de curiosidade. Afuá parece uma cidade cenográfica, ou então parada
no tempo. As ruas e as casas são todas contruídas sobre pontes e palafitas de
madeira, mantendo a cidade acima da várzea, já que Afuá é eternamente alagada
pelas águas dos rios. Por lei municipal, veículos motorizados são proibidos de
trafegar seus 8.373 km 2. Sendo assim, o meio de transporte único é a bicicleta
e invencionices derivadas. "Nossa cidade é um laboratório em plena selva.
Não existe poluição veicular, somos uma cidade oxigenada em todos os sentidos,
aqui todo mundo circula de bicicleta e triciclos. O lazer, a atividade física e
o trabalho estão conectados com a pedalada", declara nosso anfitrião,
Raimundo Carlos, o Pisca, secretário da Cultura, Esporte e Lazer da cidade de
40 mil habitantes – e 15 mil bicicletas.
Nossa conversa foi amavelmente
interrompida por um destacado cidadão afuense, o radialista, artista e inventor
Raimundo do Socorro Souza Gonçalves, ou simplesmente Sarito. Homem cheio de
ginga e talento, Sarito foi criador da primeira geração local de bicitáxis.
"Resolvi construir um veículo em 1995 para passear com minha família. O
primeiro protótipo era de madeira, tinha três rodas e capacidade para quatro
pessoas. Foi uma revolução. Desde então o bicitáxi se aperfeiçoou e ganhou
quatro rodas." Cheio de amor pra dar, Sarito nos levou à radio Afuá e nos
colocou ao vivo. Fui entrevistado e o papo rolou solto.
Na pousada Barriga Cheia alugamos
nossas bicicletas e saímos com a missão de percorrer a ciclovia que envolve
toda a cidade. As ruas e as vias de acesso na sua maioria são estreitas, o
ciclista tem que estar atento pois não existe proteção nas laterais das pistas
e numa vacilada pode raspar, trombar com outro bólido e se estatelar no terreno
alagado, 1 m abaixo. Todas as casas são de madeira, construídas em cima de
palafitas. Segundo a prefeitura, são 25 km de ciclovias na área urbana de Afuá,
sendo 60% de madeira e o restante de concreto.
Veículos motorizados são
proibidos na cidade de 40 mil habitantes e 15 mil bicicletas. "Somos uma
cidade oxigenada em todos os sentidos", diz Pisca, nosso anfitrião
Na exuberante vegetação que
circunda Afuá, a típica floresta de várzea com muita virola, anani, macacaúba e
palmeiras como buruti, babaçu, murumuru e o delicioso açaí. Paramos em uma
vendinha e pedimos uma cuia de açaí, que por lá é servido quente, sem mel, granola
ou açúcar. Para acompanhar oferecem farinha de tapioca, peixe ou camarão. O
caldo é denso e o sabor é intenso. Bem estranho para quem não está habituado.
Depois de algumas colheradas me senti como o marinheiro Popeye, cheio de
energia e procurando minha Olivia.
Boto misterioso
Nas vias principais o movimento é
intenso. Crianças indo para a escola, senhoras pedalando com suas compras e
bicitáxis. O primeiro que surgiu foi a ambulância, que saía do hospital para um
atendimento. O veículo possui quatro rodas, capota e maca. Em seguida, como uma
aparição, surge de dentro do hospital o "boto misterioso" Mister
Sarito. Tinindo inspiração, nos convida para conhecer outras quebradas de Afuá.
Todos cumprimentam o mestre de cerimônias, principalmente as mulheres – o homem
diz que no passado foi grande namorador, mas que hoje é apenas educado. Pelas
ruas, não há semáforos ou guardas e o fluxo das magrelas é incessante. Na
pedalada, Sarito nos leva a uma das três oficinas da cidade. Um emaranhado de
rodas, pneus, aros e quadros emolduram a oficina do sehor Pipoca. O consertador
nos explica que existe uma procura muito grande dos moradores para personalizar
bicicletas e bicitáxis, veículos produzidos da junção de duas bicicletas,
unidas por uma estrutura de aço. "Levamos umas quatro semanas para
produzir a carroceria e os acessórios como volantes adaptados aos pedais,
painéis, molas, porta-malas, para-choque, sistema para CD e DVD", explica
Pipoca. Modelos assim oscilam entre R$ 3 mil e R$ 7 mil. Fiz um test drive com
um bólido de quatro rodas e direção de carro. Os primeiros movimentos foram um
sacrifício, mas depois peguei o jeito e circulei a trancos e barrancos pelas
ruas estreitas.
Sarito parece um primo distante
do Serguei. Metralha ditos populares e lendas locais como uma rádio ambulante,
destila que em Afuá os moradores não vivem estressados, angustiados,
depressivos ou com doenças respiratórias como nos grandes centros. "Em
Afuá todo mundo pedala."
Na volta para o hotel o sol
castigava, e a maioria dos ciclistas pedalava com sombrinhas e guarda-sóis
agregados às magrelas. Nosso retorno para Marabá estava marcado para 21h.
Renovados,
retornamos à praça ao anoitecer e encontramos um veículo tunado
cheio de estilo. De carroceria verde e com música explodindo, a caranga chamava
a atenção. O dono, Oderley Monteiro Lobato, 28 anos, é comerciante em Afuá.
Gastou R$ 5 mil para construir sua joaninha verde amazônica e não parou por aí,
está montando outro possante envenenado. O atual é equipado com DVD, direção de
carro, molas, retrovisores, banco estofado, freio a mão e câmbio de três
marchas. Oderley modestamente acrescenta que existem outros modelos mais
invocados como a "Ferrari", o "Batmóvel" e o
"Jipão".
Assim findava nossa estada
naquela fronteira. Afuá é um laboratório amazônico em que a alternativa
sustentável da bicicleta deu certo. Um conceito único de qualidade de vida e
mobilidade urbana. Vai pedalar.
Paidégua! Meu coração marajoara aplaude e agradece.
ResponderExcluirAgradecemos você Juraci, nosso poeta BOTO. É uma honra telo por aqui em nosso pequeno alguidar das coisas de nosso povo.
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